Analice Diniz – Os Mapas Escondidos no Teu Peito (s.d.). Mais aqui.
***Uma breve introdução: Do final de 2019 pra cá comecei a levar a sério a possibilidade de juntar uma soma de escritos em um lugar só. Eram reflexos de conversas com afetos, aforismos escritos em papéis soltos, parágrafos de bloquinhos de anotação, notas tortas de pesquisas de desenvolvimento de trabalhos pontuais, pequenos textos de fichamento comentado, algum esforço em somar em algo.
O que dava alguma liga a tudo eram duas coisas bem simples: eram apontamentos sobre meus processos criativos e como percebo o tema, ou coisas que não sabia bem como e nem onde encaixar. O fato é que toda forma de expressão é, de alguma forma, constrangimento (isso já vale outro texto). Ter noção de que o tempo é curto faz a gente ter menos besteira com as coisas e ficar um tanto mais seguro do que vê, do que toca, de onde pisa. O que mais me conforta é já o fato de que pude construir um lugar pra me arreganhar.
Devo jogar mais dessas coisas por aqui.
Boa leitura, jovem.***
Talvez tenha sido quando lhe veio a calhar pela primeira vez naquela bagunça toda de se depositar um impulso diante das duas Pernas-Adiante, a ver no que aconteceria, a partir dessa força, quando suspensas aquelas estivessem no ar. A curiosidade se alastrou pelo vazio, veloz como fúria, ligeiro-bala. Pronto. Foi-se o empurrão contra o que existia Abaixo, um salto. As Pernas-Adiante deslizaram por uma grande distância até o Equilíbrio.
Percebeu que estava numa posição outra, completamente nova, de pé, de pés, de pernas, e que havia algo além do Abaixo.
Vertical.
Assim se inventou a linha do horizonte, com o chão e o não-chão.
Futuramente {terra} e {céu}.
Quem primeiro se equilibrou sobre duas Pernas-Adiante se viu entre o terrestre e o celeste, entre o mundano e o além, baixo-cima, tudo-um. Esteja feito assim.
Outras sombras por ali ao redor repetiram o gesto de suspender Pernas-Adiante, as duas, pela distância do Equilíbrio até chegarem à invenção do horizonte. Motivação do movimento, não nos compete saber, nem dúvida urgente é, vapo!, aconteceu, meu palpite: curiosidade, é combustível de todo movimento na direção do desconhecido.
A ideia de alcançar o Equilíbrio para descobrir o horizonte espalhou-se por muitas cabeças e sombras desde então. Era de extrema vantagem. Pouco em pouco, vendo ia, olha, quem tem o horizonte domina o tempo, prevê. Distância é tempo. Onde estaremos amanhã? Tempo é distância. O que está vindo? O que enfrentaremos daqui a pouco? Quem tem o horizonte já não encara sentenças assim como perguntas. Ter resposta é tecer profecia. Mas como gerar profecias? Era necessário um suporte, um repouso, e matéria prima, a coisa.
Diante da nossa primeira tela, o horizonte, era necessária uma forma de comunicar – se e a si. Comunicação é como chamamos a troca de conteúdo de um recipiente para outro recipiente. Não existe comunicação sem excedente.
Estavam ali descansadas as Pernas-Adiante que deslizaram até o Equilíbrio. Já não ajudavam a nos apoiar sobre o Abaixo porque já o fazíamos bem com as Pernas-De-Trás com o Equilíbrio que ganhamos ao suspender Pernas-Adiante, as duas. Estavam sobrando pernas e elas poderiam ser de muita serventia à nova descoberta. Já tinham estas pernas deslizado até o Equilíbrio, por que não poderiam deslizar por toda a extensão do horizonte? E não só pelo horizonte. Poderiam subir aos céus, ou descer até o chão! Tentar pra quê? O Equilíbrio já era uma conquista, mas outra a mais, venha aqui: mais uma agora.
Novos usos, nova invenção, eram os braços. Mão, antebraço e braço, assim dividiremos esta invenção no futuro para melhor compreendê-la. Os braços navegavam pelo horizonte (que também seria chamado de “firmamento”, em português [no futuro distante, inventaram ‘idiomas’ {que eram grandes conjuntos de peças para comunicação, ou troca de excedentes}], do latim, firmamentum [‘suporte’], originário do hebraico raqiya’, placa rígida, com raiz raqa’, da ação de um ferreiro expandir uma placa metálica à marteladas). Os braços dançavam trocas no horizonte, dividiam excedentes. Essas danças se tornaram tão famosas que dois espetáculos alcançaram também imenso sucesso entre os espectadores dessa época esquecida: apontar e acenar.
- Quem acena se faz ver.
- Quem aponta faz ver.
Acenar fala de si para o outro e para si. Apontar fala do outro para si e para os outros.
Quem acena deseja se projetar. Quem aponta deseja apresentar. Quem acena acaba acobertando algo ou alguém. Quem aponta acaba omitindo ou desviando a atenção de algo ou alguém. Uma dança conversava com a outra dança. Nós, montados num equilíbrio domado, dançávamos o infinito movimento na plateia e no palco, por incontáveis sóis, por incontáveis luas.
Daquele conjunto de braço, antebraço e mão, talvez quem fosse mais talentosa na dança era a mão. A mão era protagonista da dança. Braços e antebraços conduziam o espetáculo até o ápice do último ato, onde a mão surgia em um solo de dedos – tantos movimentos em um único gesto!
A mais atrevida do conjunto, a mão sempre nos chamava atenção. Não só pela beleza nos gestos, pela precisão dos movimentos. Afinal, elas eram duas, quando não várias, nos apontavam as possibilidades.
De tanto contemplar o movimento das mãos livres, elas nos presentearam com o desejo. Possibilidades sempre andam de mãos dadas com o desejo.
O desejo, algo muito parecido com a comunicação, é a troca de conteúdo de um recipiente para outro recipiente.
Ao contrário da comunicação, o desejo se move pela falta, pela ausência. Mesmo que haja excesso, pode haver desejo. Desejo existe para se ter.
Com as mãos livres poderíamos levar coisas conosco, coisas que gostaríamos que nos acompanhassem, coisas que desejávamos. Podíamos também tocar naquilo que desejávamos, se o toque for, por assim dizer, uma forma mais simples e superficiais do dispor, uma não-posse por não capturar aquilo que é tocado. As mãos livres nos fizeram conhecer inúmeras formas e texturas. Nossas mãos livres não cansavam em alimentar a fogueira da nossa criatividade, onde as chamas ardiam em formas e movimentos tão livres quanto as danças que havíamos descoberto.
Banhados pelas luzes da fogueira, os amantes das danças se perguntavam: “Se os braços e mãos se puseram dançar sobre o palco da superfície do firmamento, seria possível alguma dança acontecer sobre um palco em outro lugar?”. “Se há a tela do horizonte, deve haver outras telas possíveis”, afirmavam outros apreciadores de espetáculos. Aquelas questões se repetiam a cada nova fogueira até que alguém, num impulso, dançou as mãos sobre a areia.
O movimento da mão ficou marcado na areia. Era como parar o tempo. Ou melhor, era como enxergar o tempo. E quem enxerga o tempo enxerga a distância. “Estava o tempo inteiro ali na nossa frente!”, exclamavam com pavor. Literalmente. Estava o tempo inteiro ali na nossa frente, um rastro de dança na areia. O gesto.
Eram tantas as danças dos braços e tantos os movimentos das mãos que nos levavam por inúmeros horizontes… Eram tantos percursos que alguém viu a necessidade de contar.
Um.
Dois.
Três.
Quatro.
Cinco.
Deixamos de andar a quatro patas, inventamos os horizontes, escrevemos e fomos a contar, dançando.
Uma a uma, dia após dia, terra e céu.
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