Os robôs já conseguem sonhar com o fim do capitalismo?

26.10.2022Design

É provável que Kawaii Tornado* tenha sofrido um susto ao ver a quantidade de notificações em seu Twitter numa manhã da primeira quinzena de setembro. Participante dedicado de uma comunidade digital de criação de conteúdos para RPGs de mesa (também conhecida como Tabletop RPG, “TTRPG”), Kawaii havia publicado um novo guia para sua audiência, fã do estilo Dungeons & Dragons, entitulado “Armas e Armaduras Steampunk – Uma coleção de armas e armaduras inspiradas no estilo steampunk para o melhor jogo de RPG do mundo”, em tradução livre. 

Nosso ponto de partida.

O PDF, disponível em um fórum digital de TTRPG, foi promovido através do perfil de Kawaii na rede social do passarinho. Junto à prévia da capa do documento, escreveu: “Esta capa não maltratou um artista”. A ilustração da capa fazia parte de um pacote de 20 imagens produzidas por um software de inteligência artificial criador de ilustrações. Custou cinco dólares e o suficiente para o tweet viralizar. Se você não frequenta tanto o twitter, saiba que geralmente viralizar por lá não é algo muito tranquilo ou positivo.

Mas vamos deixar essa capa de lado, por enquanto.

#Jesus como uma participação especial em um drama policial dos anos 80

Eu lembro vagamente de há um ano ter me inscrito para ser usuário-teste de um novo software de criação de imagens através de Inteligência Artificial (IA). Hummm… Por que não inserir meu e-mail aqui?, devo ter pensado quando vi uma notícia falando a respeito da nova tecnologia. Meses depois chegou o convite, mas não dei muita importância e fui fazer alguma das inúmeras demandas de uma manhã de segunda-feira no horário comercial. 

Algumas semanas depois brotaram imagens estranhas na minha timeline, de autoria atribuída a algum motor de criação de imagem e com uma estética bem peculiar. Motores de criação de imagem são programas onde uma IA gera imagens através de comandos de texto e um banco de dados de imagens. CrAIyon, DALL-E e Midjourney são alguns dos exemplos mais famosos de aplicações desse ramo. 

A maioria delas ainda está em fase de testes, mas os resultados já impressionam. Linhas de comando mais objetivas , como “Crie uma imagem mostrando Jesus como uma participação especial em um drama policial dos anos 80” impressiona não somente pelo seu grau de absurdo, mas também pela viabilidade da cena criada.

A IA consegue reconhecer e trabalhar aspectos subjetivos dentro de uma linha de comando como tipo de enquadramento, lente ou mesmo regras de composição de layout correspondentes a uma escola estética ou período histórico. Com o treino de usuários-teste e a validação dos resultados em processo de aprendizado de máquina dentro dos softwares, os motores de criação de imagem vêm se tornando mais precisos a cada mês – e houve o caso de uma máquina que ganhou um concurso de arte e irritou artistas concorrentes, estes de carne e osso.

Computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro

Enquanto escrevia este post, o perfil de Kawaii no twitter estava trancado, restrito a usuários autorizados somente por quem tem a posse do perfil. Em sua última menção sobre a “polêmica da capa”, Kawaii se identifica como historiador e encara parte das reações a seu tweet como semelhantes às ações do Movimento Ludita inglês durante a Primeira Revolução Industrial, onde artesãos culpavam (e até quebravam) as máquinas por terem “roubado” seu lugar na indústria. Apesar de achar inevitável a consolidação da nova tecnologia de produção de imagens, ele acredita que seria bastante proveitosa tecer uma discussão sobre o quanto as IAs estão ‘roubando’ trabalhos de artistas, porque necessariamente elas precisam ser alimentadas por bancos de imagens… criadas por artistas, obviamente humanos. 

Esse talvez seja um dos aspectos menos lustrosos desta nova tecnologia: até o momento quando este texto foi escrito, a AI Art é extremamente dependente de bancos de imagens pré-concebidos para realizar novas criações. Os motores de criação de imagens se baseiam em combinar e recombinar objetos já criados, aprimorando as imagens através de aprovações por etapas de usuários em suas interfaces. Refinar mais os contornos da face ou trabalhar mais o plano de fundo? Esta versão A1 ou aquela versão A2? Lá estará algum usuário humano dizendo sim ou não e prosseguindo no refinamento. 

Quem foi que pediu salmão em um rio?

Tecer algum veredito fatalista sobre a AI Art é reverenciar a instituição do vacilo, como o poeta e escritor francês Charles Baudelaire fez no auge do século XIX ao acusar a Fotografia de ser a assassina de todas as outras linguagens artísticas.  Não vejo essa novidade como algo predatório. É só “mais uma coisa” (até bem semelhante ao que foi o surgimento recente dos NFT’s), mais uma ferramenta, e existem campos do conhecimento que podem se desenvolver muito através do auxílio da AI Art, como pesquisas em Serendipidade ou avanços no campo de Criação Assistida.

Com os recursos disponíveis hoje e numa postura de designer visual, imagino que a melhor aplicação para AI Art é gerar imagens para protótipos de alta ou média fidelidade, publicações de baixa tiragem e de uso pessoal e/ou não-comercial, ou ativos de design (avatares, planos de fundo, clichês de preenchimento, etc.) para projetos gráficos de aplicações diversas. Pessoalmente, passo a encará-la como um recurso essencialmente de suporte durante um projeto. É imprescindível usar capital humano, em sua ampla capacidade criadora e manejo sofisticado de conceitos complexos, na criação de produtos refinados que atendem com alta eficácia os propósitos enunciados por um contratante.

Afinal, os robôs já conseguem sonhar com o fim do capitalismo?

Para projetos de alta complexidade e resultados mais eficazes na elaboração de imagens, símbolos e códigos, operadores humanos ainda são indubitavelmente mais capazes do que os atuais motores de imagem. Máquinas ainda não emulam precisamente técnicas de desenho e composição com total autonomia – e, talvez a coisa mais importante, elas não conseguem pegar um conjunto de regras técnicas e implodir os parâmetros para criar algo novo… algo com alma… talvez não ainda… talvez algo no meu íntimo mais profundo diga-se “nunca serão”. Explico adiante.

Resgato um experimento que a designer e pesquisadore Sasha Constanza-Chock publicou em sua página no twitter orientando motores de criação de imagens a produzirem representações sobre conceitos complexos.

Desenhe Economia Solidária.

Desenhe Inteligência Artificial Decolonial.

Desenhe imagens da resistência trans.

Desenhe a vida após o capitalismo.

Desenhe um mundo onde cabem muitos mundos.

O experimento de Chock

À primeira vista, os resultados soam como rudimentares demais, algo como grandes colagens cafonas, totalmente destoante das inúmeras possibilidades de mundos que vislumbramos ao ter contato com esses conceitos. Para além dos produtos refletirem a incompetência destas e-inteligências em exercitar a criatividade diante de novas realidades, é evidente também que estamos diante de um problema de lacunas de indexação de imagens e restrições de repertório. Quantas imagens sobre estes temas estão indexadas? Quantas foram realizadas? Os algoritmos restringem essas temáticas? Ou, pior, estamos encarando nossa própria dificuldade de imaginar um mundo pós-capitalista após nossa capacidade cognitiva ser cooptada década a década, século a século?

Motores de criação de imagem em Inteligência Artificial podem até sonhar com ovelhas elétricas, mas definitivamente não conseguem imaginar o fim do capitalismo. Esta tarefa, simultaneamente um dever e uma habilidade, ainda é responsabilidade de criadoras e criadores engajados, designers que assumiram para si a resolução urgente da situação-problema que ameaça todas as formas de vida em nosso planeta. Essa linha divide quem (ou melhor, ‘o quê’) é uma ferramenta, um operador do sistema (como Vilém Flusser melhor definiu), e quem de fato cria, quem é capaz de construir um bem comum com autonomia, liberdade e responsabilidade com o coletivo. Em suma, quem é capaz de nutrir amor e tecer cuidado. Quem tem alma.

É um MONTE de trolls

Hoje o Guia de Armas e Armaduras Steampunk criado por Kawaii Tornado recebeu uma nova edição e capa. Dono de uma mente astuta e criativa, Kawaii encapsulou o episódio em seu universo particular: transformou a primeira edição do guia virou um item mágico no mundo de Dungeons&Dragons.

Em “O Manual do Hobbista Sobre Seu Próprio Espetáculo” (em tradução muito livre), Kawaii descreve:

Manual do Artífice
Item maravilhoso, lendário. (Amaldiçoado).

ATENÇÃO!
A capa deste pesado volume encadernado em couro retrata uma jovem terrivelmente desfigurada. A imagem, que não pode ser considerada arte, é tão terrivelmente mal feita que o mal incarnado deve estar por trás disso. Olhar esta capa foi descrito como “o equivalente a ler pornografia mal escrita”.
Lendas relatam que o tomo foi criado por um aprendiz de um artesão que utilizou seus poderes limitados para auxiliar um exército de demônios invasores. Isso causou a queda de uma civilização inteira.
Quando os deuses descobriram o que o aprendiz havia feito, amaldiçoaram seu último trabalho para se tornar este livro infeliz.

LIVRO DE INVOCAÇÃO DE TROLLS
Este livro toma a aparência de um catálogo de armas e armaduras de um artífice.
Ao ler o livro, o leitor ganha proficiência em todos os tipos de armas, armaduras e escudos.
O livro é amaldiçoado:
– Cada pessoa que vê esta capa pela primeira vez deve fazer um teste de resistência em Sabedoria com dificuldade 13 ou sofrerá 2d6 de dano psíquico. O dano é permanente e só pode ser removido através do feitiço “Modificar Memória” ou “Colírio de Desver”.
– Abrir o livro invoca instantaneamente 1d100 trolls hostis ao leitor. Eles atacam imediatamente.
– Uma vez que o leitor esteja morto ou tenha fugido da horda, os trolls lutarão contra tudo o que virem, inclusive uns contra os outros, pelo próximo minuto após o qual eles irão desaparecer.

Na fantasia, trolls são criaturas pavorosas, com inteligência de menos e violência de sobra. O termo também serve para identificar alguém cujo comportamento na internet sirva apenas para desestabilizar uma discussão e enfurecer os envolvidos.

*Mesmo após pesquisas, não consegui identificar como Kawaii prefere ser identificade. Para este texto, optei por usar o gênero masculino tradicional, entendendo que todas as menções a este gênero no texto representam sempre a homens e mulheres, remetendo a ambos os gêneros.

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